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FUTEBOL / ECONOMIA

A (conveniente) indignação seletiva, na análise do especialista


Por: A Tarde / Renato Gueudeville
Publicado em 07/01/2024 12:23
Atualização:07/01/2024 12:36

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Sabe aquele colega do trabalho, um parente ou aquele seu amigo que adora debater política (economia, religião, futebol e por aí vai), mas que seleciona fatos que o indignam e faz “vista grossa” para outros correlatos por algum tipo de interesse pessoal? A esse comportamento nós atribuímos o termo “indignação seletiva”. E quando falamos de interesse pessoal podem ser os mais diversos inclusive, por exemplo, o de ancorar um viés de pensamento.

 

O futebol brasileiro passa por momentos de profundas transformações. A Lei 14.193/21 instituiu a criação das sociedades anônimas no futebol (SAF), o que já permitiu que cerca de 24 clubes aderissem ao modelo.

 

Por muitos anos, as gestões irresponsáveis de alguns dirigentes praticamente levaram os clubes à bancarrota. Ainda assim, muitos utilizaram (e utilizam) o “doping financeiro” para acumular boas campanhas, títulos e premiações. Na corrida irresponsável dos gestores em “jogar para galera”, os clubes sempre gastaram mais do que arrecadavam e tudo isso financiado por atrasos salariais, de fornecedores, prestadores de serviços, clubes terceiros, agentes e impostos. Aliás, o Governo foi o principal financiador dos clubes brasileiros durante as últimas décadas através dos parcelamentos infindáveis de dívidas tributárias. Não é o mercado financeiro, muito comum em outras indústrias, e a razão todo mundo já sabe: não há crédito para quem não merece crédito, salvo se seu clube tiver um dirigente banqueiro.

 

Quando falarmos sob o ponto de vista econômico, não há dúvidas em que boa parte do PIB nacional se concentra no sudeste do país. São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais concentram cerca de 50% da riqueza produzida no Brasil, sobrando para os outros 24 estados dividirem o bolo da outra metade. Não tem jeito, a grana está lá!

 

E no futebol essa concentração seria diferente? É sim. É pior!

 

 

O quadro acima, do Relatório Convocados, mostra as receitas totais dos principais clubes do Brasil em 2022.

 

Os clubes de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais concentraram cerca de 70% das receitas totais. E olha que não incluí na conta o Vasco e Cruzeiro (que estavam na B e com receitas menores) e o Botafogo (em transição da SAF e com receitas menores apropriadas). Esse número vai bater fácil algo entre 75% e 80% do bolo total em 2023.

 

Claro que é fundamental ponderar o tamanho de alguns grandes clubes que possuem receitas enormes em função de mercado, capilaridade nacional de torcida, apelo de mídia e comercial, mas o desequilíbrio financeiro é evidente. Alguns clubes nunca conseguirão avançar se não tiverem representativos investimento para elenco, infraestrutura, base e liquidar dívidas. Ou seja, para arrumar a bagunça que a irresponsabilidade e gestão temerária cometeram ao longo de décadas ou para aumentar o poderio de um ator desses de uma região de menor poder econômico.

 

E alguns desses já fizeram esse movimento. Uns por necessidade de sobrevivência, outros por oportunidade de mercado. E resultados começam a aparecer:

- O Red Bull Bragantino já foi vice-campeão da Sul-Americana em 2021 e 6º lugar no Brasileirão 2023;

- O Botafogo liderou 31 rodadas do último brasileirão, mas não conseguiu manter na reta final;

 

Ambos os times já estão na Pré-Libertadores de 2024.

- O Vasco e Bahia patinaram até a última rodada, mas fizeram (e com previsão de aumento em 2024) investimentos fortes em formação de elenco que devem repercutir em performance nesse ano.

 

Essa semana vimos uma avalanche de notícias em função dos jogadores especulados por algumas SAF’s e clube-empresa:

- Everton Ribeiro, ídolo do Flamengo e que recusou uma proposta de renovação do rubro-negro para fechar com o Bahia. No pacote está um aumento salarial, contrato de 2 anos e um pós-carreira já pavimentado com o City Football Group, maior MCO (Multi-club ownership) do mundo;

- Léo Ortiz, zagueiro do Red Bull Bragantino, que é alvo para reforçar o Flamengo e que recebe uma contraproposta do clube de Bragança acenando aumento salarial no padrão dos grandes clubes e um plano de carreira para o jogador.

 

E aí o que aconteceu? A conversa da implantação do Fair Play Financeiro no Brasil - conjunto de regras que visam dar sustentabilidade econômico/financeira aos clubes e garantir a perenidade da indústria - chegou a galope, rápido como uma flecha. E aqui é importante frisar: a conversa é necessária mesmo porque dirigente de futebol austero e preparado ainda é artigo raro e horizonte de prazo de planejamento para eles se resume a falar de alguns meses na frente ou, no máximo, até o fim do seu mandato. Claro, existem raras exceções.

 

O curioso é que isso vem justamente agora, quando novos atores chegaram para tentar ressignificar a geopolítica do futebol brasileiro. As SAF’s e clubes-empresas trazem para mesa os mais diversos tipos de investidores (nacionais ou estrangeiros) que agregam dinheiro, know-how, tecnologia, processos, rede de relacionamentos e tantos outros ativos. É bom também alinhar a expectativa que nem todo player chegará com esse combo perfeito. Como em tudo na vida, existirão investidores e modelos de SAF’s bons e ruins. A curva de aprendizado do mercado (investidor, investida e demais stakeholders do ecossistema) é inevitável e necessária. Isso tornará o sistema mais maduro e equilibrado.

 

Alguém imaginou, em sã consciência, que City Group, Red Bull, Eagle Holdings e 777 fossem entrar no mercado e não fazerem investimentos vultosos? Porque não se trata só de formar elenco, mas colocar dinheiro também em infraestrutura e pagamento de dívidas. Isso levará a termos clubes mais saudáveis e propiciará que o ecossistema se torne mais competitivo no médio e longo prazo.

 

E a conversa chega cercada por uma “diarreia de análise de conceitos” (perdão, caro leitor, mas não consigo encontrar nenhum outro termo adequado). Gente que não consegue entender conceitualmente o que é um aporte de sócios, que desconhece qualquer informação do acordo de acionistas das SAF’s e os gatilhos de investimentos, que se apressa em fazer conclusões irresponsáveis.

 

Tem de tudo, inclusive nada. Um vazio de argumentos e que encontra ressonância em uma parcela, cada vez menor, de pessoas leigas no assunto e que misturam o clubismo nessa infecção toda. Pairam algumas reflexões:

⦁ E por onde andam os protestos dessas pessoas quando clubes altamente endividados continuam a fazer loucuras em contratações? Íntimos do “transfer ban” (punição da Fifa para clubes caloteiros e que limitam transferências internacionais) a ponto de alguns receberem essa punição duas vezes por ano.

⦁ Quais vozes se levantaram quando clubes tradicionais do futebol brasileiro empilharam títulos a um custo de praticamente quebrar a instituição? Alguns até viraram caso de polícia.

⦁ Quais manifestações aconteceram quando dois dos principais patrocinadores de um clube já colocaram mais de R$ 1 Bilhão em quase uma década de parceria com a instituição?

⦁ Endividamento crescente rapidamente para construção de um estádio financiado através dos mecenas do clube – além de turbinar elenco para tirar a instituição de uma fila de 40 anos de título do brasileirão - e que, alguns meses depois, a dívida é convertida em ações da SAF do clube.

⦁ Construção do estádio pela influência da maior pessoa da República e com a dívida agora sendo rolada por anos com o contribuinte sempre pagando a conta.

 

O Fair Play Financeiro (recém nomeado “Sustentabilidade no futebol”) precisa resolver primeiramente onde os problemas são mais graves: a equação perversa de gastarem mais do que arrecadam, resultando em mais dívidas crescentes e inadimplência contumaz. É o ciclo do inferno.

 

Os investimentos das SAF’s do Bahia, Botafogo, Vasco já dão provas de como os investidores querem acelerar esse processo. E isso não pode se resumir a formação do elenco principal. Infraestrutura e dinheiro na base são mandatórios para que os clubes consigam desenvolver talentos que sejam ativos valiosos nas transferências, uma característica forte do nosso futebol, mas que também não deixa de ser uma fragilidade: a dependência crescente da receita não recorrente da venda de direitos de jogadores.

 

As SAF’s (e os demais clubes) precisam crescer organicamente em outras frentes para que sobre sempre geração de caixa para investir em mais infraestrutura e talentos para fazer a roda girar. Nenhuma SAF poderá depender de aportes eternos dos seus investidores, até porque o dinheiro é limitado e aí o mecenato só mudaria de idioma e nacionalidade. Isso não pode ser uma opção.

 

Longe de achar que SAF é fórmula de mágica de bolo. O que faz a diferença é gestão responsável, entendimento da indústria e atuação da instituição no ecossistema. O ator novo nessa história são os investidores dispostos a “comprar risco” em troca de uma venda lá na frente para diversificação, seja ela de mercado ou portfólio de ativos. E o bom é que alguns entrarão para tentar diminuir o gap econômico enorme que existe nesses muitos “brasis” do nosso território.

 

A mudança de status quo do conjunto de forças do futebol brasileiro pode estar começando a acontecer. Vai ter riso e choro. Só não me venha com sua (conveniente) indignação seletiva!

 

Renato Gueudeville é administrador de empresas com MBA em Finanças Corporativas, conselheiro consultivo, gestor com conhecimento em reestruturação empresarial e atuação pelas principais instituições financeiras do país. Acredita que, no mundo da bola e da vida, fora da gestão não há salvação. É sócio do Futebol S/A e da Solve Consultoria.








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